'Tsunami' em Campo Grande: Empresa pode responder por homicídio culposo

Laudos periciais mostram que máquinas pesadas, usadas por empresa de bebidas, passaram por cima da tubulação, apesar de haver sinalização da Cedae no local

01/08/2013 04:19

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O Dia

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A delegada adjunta da 35ª DP (Campo Grande), Tatiene Damaris, afirmou nesta quarta-feira que está praticamente constatado que a culpada pelo rompimento da adutora na Estrada do Mendanha, terça-feira, que matou criança, foi fabricante de bebidas Guaracamp. Segundo Tatiene, laudos periciais apontam imprudência ou negligência de uma obra da empresa, realizada ao lado da fábrica e perto da adutora.

“Havia marcas de pneus de maquinaria pesada em cima da adutora, que pode ter pressionado a tubulação e ocasionado o rompimento. O que não se entende é o motivo de as máquinas passarem em cima da adutora sinalizada na planta da obra”, disse.

Ela acrescentou que a hipótese de má conservação da adutora pela Cedae está praticamente descartada. “Nenhuma das 12 testemunhas ouvidas relatou isso”, afirmou. Os representantes da Guaracamp faltaram ontem ao depoimento marcado na delegacia e, segundo a delegada, se faltarem de novo, serão indicados por homicídio culposo. A empresa de obras RG Projetos, responsável pela obra foi intimada depôr hoje de manhã. Funcionários da Guaracamp disseram que a fábrica está se preparando para responder as acusações da polícia, mas já se isentaram de culpa.

Ontem, moradores denunciavam o descaso da Cedae com as tubulações da Estrada do Encanamento, onde fica a adutora que rompeu. Havia remendos com madeira desfeita em uma adutora que, segundo a moradora Núbia Alves, de 30 anos, rompeu no dia 14 de outubro de 2011. Josefa Andrade mostrava um documento assinado pela própria Cedae em que a companhia reconhecia o rompimento do encanamento e ressarcia a moradora pelos bens perdidos. “Vivemos com medo deste remendo romper e acontecer outra tragédia como essa. Não dá para dormir assim”, disse Núbia.

Moradores passam a noite procurando pertences

Entre pilhas de concreto e um rastro de lama, a manhã foi de muito trabalho. Um dia após o rompimento da adutora, que provocou a morte de uma criança, deixou 17 feridos e destruiu cerca de 20 casas, moradores tentavam resgatar pertences entre os escombros.

Para Marileide Araújo, 49, a esperança era reaver carnês do INSS e a certidão de nascimento. Mas, após mais de 20 horas de buscas, ela desistiu: “Tudo que encontro está estragado”. Os prejuízos são irreparáveis. “Construí essa casa ao longo de 14 anos. Coloquei peça por peça, suei muito, fiz tudo aos poucos, para em menos de 5h tudo virar concreto moído”, disse o pedreiro Valdir Pereira, 39, irmão de Marileide.

Sobre a pilha de escombros do antigo bar, Jésus Gomes Ditta, 57, ainda não acreditava no pesadelo vivido. “Hoje, quando vi tudo no chão, a ficha caiu e percebi que o empenho de sete anos virou poeira, danei a chorar”, contou. Segundo o comerciante, caso a adutora tivesse rompido no final de semana, os clientes estariam na rota da água. “Isso daqui fica cheio até às 6h. Imagina se é em dia de movimento”.

Cedae dá R$ 1 mil para cada família

Neuzenir Valadares, Juarez da Silva e seus quatro filhos foram uma das 18 famílias que tiveram a casa destruída e precisaram ser hospedadas em um hotel no centro de Campo Grande. A Cedae custeou a estadia e deu R$ 1 mil para cada família.

Ontem, a Justiça deu liminar favorável a uma ação da Secretaria Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor contra a Cedae que exigia que a companhia pagasse exames e tratamentos médicos para quem teve contato com a água contaminada em razão da inundação.

Pais não conseguem ver o enterro

Muito abalados, os pais de Isabela Severo dos Santos, 3 anos, não tiveram forças para ver o corpo da filha sendo enterrado no Cemitério de Campo Grande. Ontem, durante a cerimônia, eles acabaram ficando na capela enquanto o cortejo seguiu. Cerca de 150 pessoas, entre parentes e amigos, acompanharam a cerimônia. A menina, que chegou a ser socorrida e não resistiu, morreu afogada quando a mãe, Rebeca, tentava passá-la ao vizinho pelo muro de casa.

De acordo com a tia da menina, Renata Severo, a mãe está sendo amparada pelos familiares. “Ela não quis ir para o hotel e está dormindo na minha casa. Acho que por enquanto os pais ainda não estão pensando em processo. Foi uma fatalidade”.

Foram disponibilizados dois ônibus para o transporte de vizinhos e familiares. Segundo parentes, o sepultamento foi pago pelo governo do estado. Eles informaram ainda que a doméstica e o pai de Isabela, Fernando dos Santos, se encontraram com o governador Sérgio Cabral na noite de terça-feira.

“Não sabemos nem como vamos contar aos coleguinhas que a Isabela não estará mais entre nós. Ela era uma menina maravilhosa, amorosa”, completou Ana Cláudia de Lima Santos, professora da menina na Creche Municipal Sonho Feliz, que volta a funcionar hoje.

Em menos de 24 horas da tragédia que abalou moradores de Campo Grande, outra tubulação da Cedae estourou, dessa vez na Avenida Vicente de Carvalho, próximo à estação do metrô do bairro. Em 15 dias, é a segunda vez que a tubulação é quebrada, segundo moradores, por causa de obras na região. O vazamento não atingiu os imóveis, mas interrompeu o fornecimento de água.

O acidente aconteceu em plena madrugada, quando uma retroescavadeira da empreiteira Andrade Gutierrez rompeu o cano de 200 milímetros ,causando alagamento em um trecho de 300 metros de extensão, que foi da esquina da Avenida Automóvel Clube até o Shopping Carioca. A equipe de operários fazia a terraplenagem para as obras da Transcarioca, da prefeitura.

“Ninguém consegue dormir porque os operários começam a trabalhar às 23h e vão até amanhecer o dia. O rompimento aconteceu às 4h da madrugada. Foi um barulho enorme. De manhã, as pessoas queriam sair e não podiam. Tudo estava completamente alagado”, contou o comerciante Anderson Cícero da Silva, 40 anos.

Diva Gonçalves, 60, é um desses casos. Ela saiu de sua residência às 8h para ir ao médico. “Tive que tirar os sapatos e pôr os pés naquela água suja, cheia de lama”, relatou a moradora, lembrando que há duas semana um outro cano da Cedae foi estourado durante obras na altura da estação do metrô de Vicente de Carvalho.

Policiais da Delegacia de Defesa de Serviços Delegados estiveram no local. Dois engenheiros da Andrade Gutierrez e um da Cedae acompanharam os trabalhos da perícia.

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