Rede de Assistência às Vítimas de Violência Sexual atende 320 crianças

Grande parte das agressões ocorre nas residências, em sua maioria por pais e outros familiares

13/05/2019 15:09

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Agência Alagoas

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Desde que foi criada, em outubro do ano passado, a Rede de Atenção às Vítimas de Violência Sexual (RAVVS) da Secretaria de Estado da Saúde (Sesau) já conseguiu assistir e proteger 413 pessoas em situação de vulnerabilidade. Deste total, 379 são do sexo feminino, sendo 320 casos entre o grupo de crianças e adolescentes de 0 a 17 anos. A maior parte das agressões ocorre na residência dos menores, em sua maioria por pais e outros familiares, ou alguém do convívio muito próximo da criança e do adolescente, como amigos e vizinhos.

De acordo com Camile Wanderley, coordenadora estadual da RAVVS, o número é muito significativo, pois quanto mais cedo for descoberto o abuso, mais fácil será evitar que o agressor continue com o ciclo vicioso. Para ela, abordar a educação sexual e, sobretudo, os casos de violência na escola, é importante para que, diante das ocorrências de abuso em sala de aula, os professores estejam preparados para identificá-los e saber quais procedimentos tomar. “Muitos educadores ainda não sabem o que fazer diante dessas situações, mas muitas vezes eles são os únicos que podem interromper o ciclo da violência”, afirma.

A coordenadora destacou que qualquer pessoa, vítima de violência, pode ser atendida pela RAVVS. Todavia, como a maioria dos casos acontece com o público infanto-juvenil, é preciso preservar as crianças e os adolescentes, já que o impacto que a violência sexual causa na estrutura deste grupo demanda tempo para ser reparado. Como os casos de abuso sexual são de difícil prevenção, e em muitas vezes, praticados dentro da própria família, uma relação aberta com as crianças e os adolescentes é necessária. 

Via de regra, segundo Camile, não tem como perceber o abuso fisicamente, contudo, o comportamento da criança é alterado. O abuso atinge de tal maneira que ela não consegue fugir. A criança passa a somatizar todo o problema, e isso revela mudanças em seu comportamento. A vítima se torna mais agressiva ou, ao contrário, mais introspectiva, depressiva, calada. Qualquer tipo de alteração comportamental é um sinal de alerta.

“A escola também é porta de entrada para a violência sexual, porque quando detectado nesse ambiente os professores, coordenadores, diretores ou até mesmo os amigos podem entrar em contato com a RAVVS ou com o Conselho Tutelar para que seja dado o procedimento e o encaminhamento do caso. Não podemos nos deter apenas aos equipamentos da saúde”, destacou Camile Wanderley.

Segundo ela, entre os casos exitosos que a RAVVS conseguiu resolver está a de uma menina de 10 anos que, em meados do final de outubro e início de novembro do ano passado, ao visualizar uma reportagem da Rede na tevê, anotou o número num bloquinho para denunciar que era abusada sexualmente pelo padrasto. Contudo, quando o agressor viu a enteada escrever o número no papel, bateu nela com tanta violência que a criança, com medo, fugiu para a casa de uma tia. 

“Quando a tia entrou em contato com a RAVVS, imediatamente fizemos uma articulação com o Conselho Tutelar. A criança foi atendida no HGE [Hospital Geral do Estado] e, ao chegar lá, foi feito todo o procedimento junto ao Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente e o IML [Instituto Médico Legal]. Abrimos um BO [Boletim de Ocorrência] para que fossem tomadas as providências legais em relação ao agressor. A vítima começou a ser segmentada pela Rede e esse foi um dos casos que impactou muito pelo fato de que, quantas crianças e adolescentes ainda sofrem caladas, às vezes por falta de conhecimento, de vergonha e, principalmente, com medo”, destacou.

Segundo Camile Wanderley, atualmente a criança permanece com a guarda da tia. No entanto, a coordenadora estadual da RAVVS foi enfática ao dizer que a menina vai precisar de tempo para voltar a sua rotina. “Uma criança de 10 anos está começando a entrar precocemente na puberdade, pois o corpo não está nem formado. Além da violência psicológica, existe o dano da estrutura do próprio organismo que não está nem concebido, formado. Por muitas vezes, as vítimas desenvolvem o transtorno de estresse pós-traumático e aí precisamos trabalhar de forma assertiva para que isso possa ser equacionado a fim de que ela possa voltar à vida e não desenvolva nenhum tipo de comportamento agressivo, psicótico e até depressivo”, garantiu a coordenadora.

Camile Wanderley explicou que, segundo a literatura, o agressor, geralmente, foi agredido em algum momento da vida. Por isso, é importante o cuidado com essas vítimas para que elas não desenvolvam determinadas patologias, tampouco repliquem um tipo de comportamento abrupto, a fim de que não seja um futuro agressor. “Ela verbalizava bem e chorava muito enquanto relatava o caso. Esse tipo de violência é crônico. Nos momentos de contato com essa vítima recordo-me que ela queria, no desespero, dar vazão, expulsar tudo aquilo que estava angustiando, maltratando e adoecendo. O psicológico fica adoecido, o trauma fica recorrente. Consequentemente a criança vai ficar com aquela imagem repassando várias vezes em sua cabeça, com pensamentos automáticos o tempo todo”, salientou Camile.

Inocência Perdida – Outro caso que teve um desfecho positivo foi o de uma adolescente de 13 anos. Conforme a coordenadora estadual da RAVVS, a Rede foi acionada por um conselheiro tutelar, após os professores identificarem que a menina estava retraída dentro e fora da sala de aula. Logo, a mãe foi chamada para conversar e, de pronto, sua filha encaminhada para a Delegacia da Criança e do Adolescente.

No local, ela contou que era abusada sexualmente pelo pai desde os seis anos de idade. De acordo com Camile, o genitor ameaçava a menina, dizendo que, se ela falasse alguma coisa para alguém, mataria sua mãe e sua irmã mais velha, que também tinha sido abusada sexualmente por ele. Em depoimento, a mãe relatou que nunca percebeu um comportamento estranho do companheiro para com as filhas e que só teve coragem de ir à delegacia quando soube, de forma inesperada, o que tinha acontecido com as meninas. Ele encontra-se foragido desde a denúncia, enquanto as irmãs estão protegidas e bem-cuidadas num abrigo da capital.

Mãe e filhas abusadas – Outro caso que chamou a atenção da RAVVS e que teve o atendimento célere e humanizado foi o de uma de mãe que procurou a Delegacia da Criança e do Adolescente quando descobriu que seu companheiro estava abusando das três filhas. A mulher disse ainda que foi abusada pelo mesmo indivíduo na adolescência, mas que, por vergonha e medo, nunca contou para ninguém. O homem está preso desde a denúncia.

Resultados surpreendem – Após seis meses de implantação, Camile Wanderley disse que a RAVVS ainda precisa crescer em vários aspectos. Contudo, diante de tão pouco tempo apresenta resultados surpreendentes. “Já conseguimos entrar nas unidades de saúde e fazer com que os profissionais tenham um entendimento sobre a Rede e como devem proceder para assistir a essa vítima da melhor maneira possível. Como profissionais de saúde, estamos discutindo mais sobre a situação da violência sexual no Estado, e isso é um saldo bastante significativo para toda a nossa equipe”, avaliou. 

Para ela, criar espaços de discussão faz com que a Rede se fortaleça no atendimento a essas vítimas, visto que, aos poucos, barreiras vão sendo desmitificadas. No olhar de Camile Wanderley, existem ainda muito medo e preconceito da sociedade em relação ao tema e, por isso, é preciso que as pessoas comecem a entender que o falar proporciona, sim, maiores esclarecimentos.

Parceiros – Na tentativa de ajudar a identificar as vítimas e encaminhá-las o mais rápido possível para os cuidados necessários, em seis meses a RAVVS já conseguiu estabelecer um canal de comunicação com as secretarias da Educação, de Segurança Pública, da Mulher e dos Direitos Humanos, da Assistência e Desenvolvimento Social, da Prevenção à Violência, bem como a Defensoria Pública, o Ministério Público, Poder Judiciário e o Departamento de Psicologia da Universidade Tiradentes (Unit).

A parceria tem possibilitado mostrar a população alagoana que existe um serviço preparado para garantir o atendimento médico de forma humanizada e integral, a fim de que a vítima de exploração sexual possa voltar a ser reinserida novamente na sociedade.

Atendimento – O serviço oferece assistência multidisciplinar em saúde, com transporte entre os pontos de atenção 24 horas por dia, de domingo a domingo. A Rede pode ser acessada através dos telefones 0800 284 5415, 3315-2059 e 9 8882-9765, e atua de forma integrada com os órgãos de segurança pública, a exemplo do Instituto Médico Legal (IML) e delegacias. 

Primeira Edição © 2011