Sérgio Guizé e Carcarah têm interpretações ferozes em 'Oeste Verdadeiro'

20/06/2017 07:45

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Estadão Conteúdo

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Escrita por Sam Shepard em 1980, a peça Oeste Verdadeiro trata de uma família em crise; é a história de dois irmãos, completamente diferentes, que não conseguem se entender. Vista apenas em seus contornos, a temática parece universal e, provavelmente, atemporal. Mas a mirada escolhida pelo dramaturgo norte-americano desloca esse enredo para um mundo agonizante. Um mundo masculino em sua essência - mas não da masculinidade que se apresenta como status dominante. Aqui, estamos a olhar para homens deslocados, afogados em sua violência sem freios, muito distantes do ideal de heroísmo e bravura.

É nessa masculinidade anacrônica que Shepard e Mario Bortolotto se encontram. Em 2016, o diretor já havia montado, do mesmo autor, Criança Enterrada, drama sobre o conflito entre um patriarca impotente e seus filhos desestruturados. Nos dois espetáculos, uma miríade de personagens bêbados, frustrados e à margem da sociedade. Tudo emoldurado pela estética suja que se tornou a assinatura do encenador, com seus intérpretes levados ao limite da exposição e da exaustão física.

Em Oeste Verdadeiro, Austin (vivido por Carcarah) está na casa da mãe, que saiu em uma viagem de férias. Encarnação do bom moço, ele é um roteirista em busca de uma oportunidade em Hollywood. Suas ambições parecem ter tudo para se concretizar: tem uma história de época na mão e bons contatos com um produtor de cinema. Os planos, porém, serão frustrados pela chegada inesperada do irmão, Lee (Sérgio Guizé) - que sobrevive de pequenos crimes e está de volta após uma temporada de reclusão no deserto. 

Sem nenhuma experiência no ramo literário, mas impregnado pela "vida real", Lee rouba a chance do irmão ao sugerir uma trama de perseguição à moda western, com direito a cavalgadas em pradarias e questões de honra. Discute-se em cena a possibilidade de que ainda existam, hoje, histórias do velho oeste. Um debate que realça a crise posta em cena: o homem, branco e heterossexual, é a personificação do poder. Mas o que acontece quando todos os estereótipos sobre os quais se estruturam o masculino caem por terra? Existe um ideal que, quando frustrado, retorna como barbárie. 

O enfrentamento entre mocinho e bandido não segue o rumo esperado. Em pouco tempo, tudo vai se desorganizar. Aparentemente equilibrado, casado, pai de um filho, o personagem Austin logo cederá ao desregramento representado pelo irmão, o desejo por alguma identidade o leva às bordas de seu próprio ser Enquanto bebem e se agridem, os irmãos rememoram a imagem do pai - um alcoólatra que perdeu todos os dentes e vive isolado, também no deserto. Essa, aliás, é uma imagem recorrente no teatro do autor: "Sempre pensei que o deserto era a antítese da paz, algo que o ataca", disse Shepard em entrevista ao The Guardian. 

Uivos de coiote cortam os raros momentos de silêncio. E blecautes marcam as mudanças de cena. Quase ininterruptamente, porém, o palco está tomado por uma tempestade de gestos e palavras. Nada sobrará intacto no precário cenário. Cadeiras, plantas, utensílios de cozinha - tudo voará pelos ares. Os irmãos ficam cada vez mais bêbados, mais desequilibrados, mais violentos. Atiram-se contra as paredes, ao chão, um contra o outro. 

Impressiona a disponibilidade de Sérgio Guizé e Carcarah para tal escalada de destruição: são interpretações dilaceradas, sem reservas. A partir de determinado ponto, o excesso começa a pautar tudo na encenação, torna-se estruturante. Um descontrole pelo qual o espectador não passa incólume. A quem está na plateia cabe uma sensação de cansaço, de saturação dessa cólera sem medida. Mas como retratar o caos com equilíbrio? Talvez, o colapso do sonho americano soe mesmo barulhento e terrível.

Primeira Edição © 2011