O indiscutível alcance da garantia da impenhorabilidade do bem de família

26/09/2013 10:44

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A legislação brasileira considera impenhorável imóveis que se destinem à moradia como forma de firmar amparo à família. A própria constituição Federal já estabelece tal garantia ao assegurar, na qualidade de direito fundamental do cidadão, a sua proteção especial pelo Estado, lastreada nos significados da dignidade da pessoa humana (incisos II e III, do art. 1º, art. 6º e art. 226, da CF).

Isto não é erigido à toa. De fato, o domicílio pessoal, como pressuposto do direito à moradia, possui contornos de inviolabilidade – ainda que parcial, dada as exceções previstas na forma constitucional, servindo de local de reserva, intimidade, descanso e asilo ao cidadão. Aliás, a moradia é sinônimo de cidadania já que sublinha, verdadeiramente, o guarnecimento institucionalizado da família como alicerce da sociedade, sendo reflexo do regime consolidado pelo Estado Democrático de Direito.

Consubstanciando nesses caracteres, o imóvel residencial reservado à moradia da família se reveste de impenhorabilidade, não podendo o mesmo responder por dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza desde que contraída pelos cônjuges, pais ou filhos e que os mesmos nele residam, salvo as exceções legais. Eis, aqui, o propósito da Lei nº. 8.009/90: assegurar o direito à moradia pela família. Importante ressaltar, no entanto, que, para efeito legal, apenas é considerado como bem de família um único imóvel e que o mesmo seja destinado à moradia permanente.

Ocorre que, em muitas ocasiões, imóveis ocupados por um único indivíduo acabam sendo objeto de ordens de constrição patrimonial (penhora), exigindo, a partir daí, um trabalho de interpretação mais justo e equânime a fim de não se impor limitações descabidas pela mera aplicação mecânica ou seca dos enunciados da lei.

Não há como negar que a intenção da Lei nº. 8.009/90 foi o de proteger o asilo da família. Todavia, restringir o alcance normativo da lei ao conceito objetivo de família ou entidade familiar não revelaria a autêntica pretensão do Direito em fomentar aos indivíduos – não apenas aqueles incluídos num determinado arranjo familiar, condições de subsistência com dignidade e com certa qualidade de vida.

Desse modo, o alcance da norma se expressa além do liame conceitual de família, abarcando outros indivíduos que, por circunstâncias especiais, vivam sem parceiras afetivas (filhos, cônjuges ou companheiros).

Com essa linha de raciocínio, a jurisprudência do país já sinaliza ao reconhecimento da garantia da impenhorabilidade de imóveis residenciais ocupados por pessoas solitárias, incluindo aí os indivíduos solteiros, divorciados e viúvos. É o caso do julgado no REsp 450989/RJ, do Superior Tribunal de Justiça: “PROCESSUAL – EXECUÇÃO – IMPENHORABILIDADE – IMÓVEL – RESIDÊNCIA – DEVEDOR SOLTEIRO E SOLITÁRIO – LEI 8.009/90. - A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão. - É impenhorável, por efeito do preceito contido no Art. 1º da Lei 8.009/90, o imóvel em que reside, sozinho, o devedor celibatário” (EREsp 182.223-SP, Corte Especial, DJ de 07/04/2003). (BRASIL. STJ. 3ª TURMA, REsp 450989/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, Data do Julgamento 13/04/2004, DJ 07/06/2004. p. 217). Aplicar a lei, neste viés, exige bom senso e sensibilidade do julgador.

O entendimento está tão consolidado que o próprio STJ editou verbete sumular que traduz bem essa ideia: “O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas” (Súmula nº. 364).

É óbvio que, em todo o caso, as hipóteses de exceção à impenhorabilidade hão de ser observadas (para satisfação de créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; de crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato pelo titular; para pagamento de pensão alimentícia; para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar; para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens; e por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação), respondendo, assim, o patrimônio do devedor mesmo em se tratando do único imóvel residencial destinado à moradia.

Portanto, não é apenas a família/entidade familiar que se torna protegida pela lei; pelo contrário, a aplicação legal deve estar atenta sempre ao verdadeiro ideal de justiça, socorrendo todos aqueles que dela careçam, com o implemento efetivo de dignidade e de cidadania.
 

Primeira Edição © 2011