'Diz-me teu tipo sanguíneo e te direi quem és', dita a obsessão japonesa

Crença de que o tipo de sangue determina a personalidade de uma pessoa influencia relacionamentos e chances de emprego no Japão.

06/11/2012 09:00

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G1

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Você é A, B, O ou AB? Na maior parte do mundo, perguntar sobre o tipo sanguíneo de uma pessoa é relevante em um contexto médico, quando se discute a possibilidade de uma transfusão de sangue. Não no Japão.

Na sociedade japonesa, existe a crença de que a personalidade de uma pessoa está vinculada ao seu tipo de sangue – e isso pode ter implicações profundas sobre sua vida amorosa e profissional.

Reza a lenda que pessoas do grupo sanguíneo A são sensíveis, perfeccionistas e trabalham bem em equipe, mas são ansiosas demais. As do grupo O são curiosas e generosas, porém, teimosas. Indivíduos com tipo de sangue AB são artísticos, misteriosos e imprevisíveis. Os do grupo B são alegres, porém, excêntricos, individualistas e egoístas.

Cerca de 40% da população japonesa pertence ao grupo A, 30% ao O, 20% ao B e 10% ao AB.

Quatro livros que descrevem as características associadas aos diferentes grupos sanguíneos se tornaram best-sellers no país, totalizando mais de 5 milhões de cópias vendidas. E muitos outros títulos já foram publicados sobre o tema.

Programas matinais de TV, jornais e revistas dedicam espaços regulares, como nas previsões do horóscopo, aos vários tipos sanguíneos. Agências matrimoniais oferecem serviços baseados em grupos sanguíneos, enquanto quadrinhos e videogames com frequência mencionam o tipo de sangue dos personagens.

A obsessão japonesa com o assunto também resultou no surgimento de uma série de produtos, como refrigerantes, gomas de mascar, sais de banho e até camisinhas direcionados a consumidores de acordo com seu tipo de sangue.

Especialistas enfatizam que essas crenças não têm base científica e vêm tentando, sem sucesso, combatê-las.

Uma possível explicação para o fenômeno é o fato de que, em uma sociedade relativamente uniforme como a japonesa, crenças como essa são uma forma simples de dividir as pessoas em grupos facilmente reconhecíveis.

"Ser igual é considerado algo bom aqui na sociedade japonesa", diz a tradutora Chie Kobayashi. "Mas gostamos de encontrar pequenas diferenças que distinguem as pessoas."

Século 20

O sistema de grupos sanguíneos ABO foi descoberto pelo cientista australiano Karl Landsteiner em 1901. A pesquisa de Landsteiner, que lhe valeu um Prêmio Nobel, abriu caminho para transfusões de sangue mais seguras.

No período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, o trabalho do australiano foi apropriado por nazistas em busca de uma supremacia racial e por adeptos da Eugenia, teoria que propunha o aperfeiçoamento da espécie humana por meio da seleção genética.

Na década de 1930, o governo militar japonês também incorporou as pesquisas de Landsteiner para treinar soldados. Segundo relatos, durante a Segunda Guerra, o Exército Imperial formava grupos de batalha de acordo com os tipos sanguíneos.

O estudo dos diferentes sangues no Japão tornou-se popular após a publicação, na década de 1970, de um livro do escritor Masahiko Nomi, que não tem formação médica. Mais recentemente, o filho de Masashiko, Toshitaka Nomi, publicou uma série de livros que contribuíram para disseminar ainda mais as várias teorias sobre o assunto.

Toshitaka também fundou o Institute of Blood Type Humanics. Segundo ele, o objetivo da entidade não é julgar ou estereotipar as pessoas, mas aproveitar ao máximo os talentos e melhorar os relacionamentos humanos de cada uma.

Cotidiano

Essas crenças afetam a vida da população japonesa de maneiras surpreendentes. Segundo relatos, o time feminino de softball, ganhador de uma medalha de ouro nas Olimpíadas de Pequim, usou teorias sobre tipos sanguíneos para preparar treinamentos específicos, sob medida, para cada jogadora.

Além disso, algumas escolas maternais dizem usar métodos de ensino baseados nos tipos sanguíneos das crianças. E até as grandes companhias se baseiam no tipo sanguíneo do funcionário antes de atribuir tarefas e responsabilidades.

Em 1990, o jornal "Asahi Daily" publicou um artigo dizendo que que a companhia de eletrônicos Mitsubishi havia anunciado a criação de uma equipe composta inteiramente de trabalhadores com tipo sanguíneo AB, devido à sua "habilidade de fazer planos".

A política japonesa não está imune a essas teorias. Um ex-primeiro-ministro fez questão de revelar que pertencia ao grupo sanguíneo A, enquanto seu adversário pertencia ao grupo B.

No ano passado, o ministro Ryu Matsumoto teve que renunciar depois de apenas uma semana no cargo. Ele foi flagrado por câmeras de TV maltratando verbalmente um grupo de autoridades. Em seu discurso de renúncia, Matsumoto atribuiu sua irritabilidade e comportamento impetuoso ao seu tipo de sangue, B.

Preconceito

Nem todos, no entanto, veem a obsessão japonesa por tipos sanguíneos como uma diversão inofensiva. Ela às vezes se manifesta em casos de preconceito e discriminação, algo que está se tornando tão comum que os japoneses agora têm um termo para isso: bura-hara, ou "assédio por tipo sanguíneo".

Segundo relatos, a discriminação contra os tipos B e AB gera perseguições de crianças nas escolas, perda de oportunidades de emprego e o fim de relacionamentos.

Apesar de várias advertências das autoridades, empregadores continuam perguntando o tipo sanguíneo de candidatos nas entrevistas, disse Terumitsu Maekawa, que pesquisa religiões na Asia University, em Tóquio.

"Podemos indicar tendências gerais de um grupo, mas você não pode dizer que uma pessoa é boa ou má por causa do seu tipo sanguíneo", afirmou Maekawa, autor de vários livros sobre grupos sanguíneos.

Assim como as teorias que deram origem à lenda, as conclusões do especialista também não podem ser comprovadas cientificamente.

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