Jovem afegã paga por crime cometido por outros membros de sua família

Meio de fazer justiça com as próprias mãos, prática conhecida como 'baad' consiste em sequestro de meninas como forma de pagamento por crimes feitos por mais velhos

23/02/2012 06:07

A- A+

iG

compartilhar:

Shakila, que tinha 8 anos de idade na época, estava prestes a dormir quando um grupo de homens carregando fuzis AK-47 invadiu sua casa. Ela lembra deles reclamando de como sua família havia sido desonrada e como eles não haviam sido pagos por isso enquanto a arrastavam.

Acontece que Shakila, que foi sequestrada juntamente com sua prima como parte de uma maneira afegã tradicional de fazer justiça conhecida como "baad", era o pagamento.

Embora o baad (também conhecido como baadi) seja considerado ilegal pelas leis afegãs, e a maioria dos estudiosos religiosos digam que também é proibido pela lei islâmica, o sequestro de meninas como forma de pagamento por crimes cometidos pelos mais velhos ainda parece estar em alta. Shakila, por causa da fuga de um de seus tios com a mulher de um oficial distrital, foi levada e mantida em cativeiro por quase um ano. Foi o oficial do distrito, furioso com a desonra que sofreu, que enviou seus homens para raptá-las.

O caso de Shakila é bem incomum, tanto porque ela conseguiu escapar quanto porque ela e sua família concordaram em compartilhar seu sofrimento com um estranho. A reação do pai da menina em relação ao sequestro também ilustra a dificuldade de tentar mudar esta prática que está tão enraizada na cultura afegã: ele disse que ficou indignado com o fato dela ter sido sequestrada, pois segundo ele, ela já estava prometida em casamento para outra pessoa.

"Nós não tínhamos noção do que estava acontecendo", disse Shakila, que hoje está com quase 10 anos de idade. "Eles nos colocaram em um quarto escuro com paredes de pedra e sujo, onde nos batiam com paus e diziam: 'Seu tio fugiu com nossa esposa e iremos nos vingar por isso. Iremos derrotá-lo com nossa vingança'", contou de maneira suave a história de como foi levada da casa de sua família.

Recorrente

Apesar de ter sido denunciada pelas Nações Unidas como uma "prática tradicional nociva", o baad é muito comum na zona rural do sul e leste do Afeganistão, áreas que são fortemente Pashtun, de acordo com os trabalhadores de direitos humanos, advogados dos direitos das mulheres e especialistas em auxílio humanitário. O baad requer que uma mulher jovem ou muitas vezes até mesmo uma criança seja forçada à escravidão ou ao casamento. A prática é feita de maneira escondida porque as meninas servem praticamente como um pagamento para compensar crimes tidos como vergonhosos, como assassinato e adultério, e atos proibidos pela cultura afegã, como a fuga, explicaram os advogados de direitos das mulheres e dos idosos.

A força do sistema de justiça tradicional e o uso contínuo do baad é tanto um sinal de que os afegãos não têm fé no sistema de justiça do governo, que dizem ser muito corrupto, quanto demonstra seu sentimento de insegurança. O baad é mais comum em áreas onde é mais perigoso para as pessoas procurar as instituições governamentais. Em vez de recorrer aos tribunais, elas recorrem às chamadas jirgas, assembleias de anciãos tribais que usam a lei tribal, que permite a troca de mulheres.

"Existem duas razões pelas quais as pessoas se recusam a ir aos tribunais. Primeiro, o governo corrupto, que solicita abertamente um pagamento para cada caso, e depois por causa da instabilidade", disse Nader Hajji Mohammed Khan, um ancião de Helmand, que muitas vezes participa do julgamento de casos que envolvem o baad. "Além disso, em lugares onde existe uma forte presença do Taleban, eles não permitem que as pessoas possam ir aos tribunais para resolver seus problemas."

Defensores dos direitos das mulheres temem que os progressos atingidos recentemente contra o baad desapareçam à medida que a Otan diminua o investimento financeiro em programas de conscientização do público sobre o assunto.

"O baad diminuiu em Oruzgan nos últimos dois anos devido a uma forte campanha de relações públicas que realizamos em toda a província", disse Marjana Kochai, a única mulher no conselho provincial de Oruzgan. "E nós estamos realizando reuniões com os anciãos e alertando-os para não tomar essas decisões ilegais e anti-islâmicas".

Raízes

A prática do comércio de mulheres começou antes do islã, quando tribos nômades viajavam pelas montanhas do Afeganistão e pelos desertos. Ainda hoje, fora de algumas áreas urbanas do Afeganistão, muitas dessas tradições permanecem muito enraizadas, segundo especialistas em sistemas tribais de justiça.

"Para os nômades, não existia a polícia, não havia um tribunal, tampouco um juiz que decidisse sobre as questões humanas, então eles recorriam às únicas coisas que tinham, a violência e a matança", disse Nasrine Gross, uma socióloga afegã-americana que estuda a situação das mulheres afegãs. "Então, quando um problema não se resolve, você acaba oferecendo as únicas coisas que você possui: o gado é mais precioso do que uma menina, porque o gado você pode vender, então você acaba dando dois de seus rifles, um camelo, cinco ovelhas e, em seguida, as meninas que podem então ser vendidas."

A ideia é que através da entrega de uma menina em casamento com um membro da família que sofreu a ofensa acabe unindo as duas famílias rivais, então elas estão menos propensas a continuar uma guerra que pode envolver muita violência, e isso ajuda a compensar a família pelo trabalho de um parente perdido.

Além disso, quando a menina tem filhos, eles são uma espécie de substituto simbólico para o parente que foi perdido.

Não há nenhuma contagem oficial do número de meninas dadas em baad todos os anos, mas no distrito onde aconteceu o caso de Shakila, a diretora do escritório das mulheres do conselho local disse estar ciente de um ou dois casos por mês, mas que muitos destes casos nunca vêm à tona. Eles nunca tinham ouvido falar do caso de Shakila.

Um relatório de 2010 das Nações Unidas sobre práticas tradicionais nocivas às mulheres descreveu o baad como "ainda presente" nas áreas rurais.

Entrevistas realizadas em nove das maiores províncias pashtun com representantes do governo, mulheres membros dos conselhos provinciais, chefes de tribos e outras mulheres influentes registraram uma grande quantidade de histórias que falavam sobre suicídio, abuso e estupro. Eles descobriram que praticamente todo mundo sabia sobre a prática, muitos tinham vergonha dela e a maioria das pessoas conhecia pessoalmente alguém que havia sido vítima dela. O Afeganistão proibiu o baad em 2009, quando aprovou a Lei da Eliminação da Violência Contra a Mulher, mas a sua aplicação tem sido irregular, especialmente no sul e no leste do país, de acordo com as Nações Unidas.

A família de Shakila, assim como muitas outras na província rural de Kunar, não se opôs ao baad, mas alegou que o conselho tribal ainda não havia tomado uma decisão em seu caso e que Shakila havia sido prometida casamento a um primo no Paquistão. Sob o código pashtun, segundo a família, ela não estava disponível para ser dada já que era a propriedade de um outro homem. (Noivados assim são ilegais, mas comuns em áreas rurais pashtun.)

"Nós não nos importamos em dar nossas meninas", disse seu pai, Gul Zareen. "Mas ela não era minha para que eu pudesse dar."

As opiniões a respeito do baad são muito diferentes entre homens e mulheres, os homens o enxergam como uma forma de preservar as famílias e por um fim a brigas violentas entre feudos e as mulheres enxergam o sofrimento da jovem que está tendo que pagar por um erro que nem sequer cometeu.

"O baad tem aspectos bons e ruins", disse Fraidoon Mohmand, um membro do Parlamento da província de Nangahar, que liderou uma série de jirgas. "O aspecto ruim é que você pune um ser humano inocente pelas irregularidades de alguém e o aspecto bom é que você consegue impedir que duas famílias, dois clãs, apelem para a violência, que causaria morte e miséria." Ele também disse que acredita que uma mulher dada em baad sofre apenas por um período.

Não é bem assim, disseram as mulheres afegãs entrevistadas, especialmente se ela dá à luz uma menina.

''A mulher que é entregada a uma família como parte do baad será sempre a miserável'', disse Nasima Shafiqzada, chefe dos assuntos da mulher na província de Kunar. "Ela tem de trabalhar muito e será maltratada. E terá de ouvir muitos xingamentos das outras mulheres da família."

Os parentes de Shakila são trabalhadores pobres que vivem na zona rural de Naray na província de Kunar perto de um pequeno rio não muito longe da fronteira com o Paquistão. Ela frequentou a escola, brincava com seus irmãos e era uma criança saudável, seus familiares disseram. Isso mudou depois que ela foi levada pela família Fazal Nabi, que faz parte do clã gujar, uma tribo em Kunar com uma maior presença no Naray que a tribo de Shakila.

Tortura

Durante a sua prisão, Shakila e sua prima foram autorizadas a sair do seu quarto escuro depois de três meses e apenas para que pudessem transportar lenha das montanhas e baldes de água do rio. Durante o ano todo que estiveram sob essas condições, nenhuma das meninas recebeu um novo conjunto de roupas. Nos primeiros seis meses, elas nem sequer tinham permissão para lavar as roupas que usavam, deixando-as com uma aparência suja ainda mais propícias para que a família as odiassem. Elas foram alimentadas com pão e água todos os dias.

'' Eles nos torturaram de uma maneira que nenhum ser humano deveria ser tratado”, disse Shakila. E respondeu baixinho e escondeu o rosto quando perguntada sobre cicatrizes brancas em sua testa. "Foi de quando eles me jogaram contra a parede de pedra", disse ela.

Sua prima escapou primeiro, fazendo com que Shakila fosse tratada ainda mais violentamente. Ela foi amarrada dentro da casa novamente e espancada. Só podia sair para fazer suas orações, quando um dia conseguiu escapar para fora do portão. Para evitar ser vista, ela caminhou através da vegetação rasteira até a vila onde sua irmã morava. Quando Shakila apareceu na porta de sua irmã, ela estava tão magra e suja que a irmã quase não a reconheceu.

Poucas horas depois, o homem e seus guardas vieram à procura de Shakila, vasculhando cada cômodo da casa de seu pai, acusando-o de organizar a sua fuga e ameaçando matar todos os homens da família.

Aterrorizado, o pai e os outros parentes esperaram até o anoitecer e, em seguida, levando consigo quase nada a não ser as roupas que vestiam, fugiram para as montanhas, andando a noite por trechos menos utilizados porque os guarda-costas do oficial distrital estavam vigiando a única estrada que leva ao vilarejo.

Agora vivendo em Asadabad, a capital provincial, onde eles se sentem mais seguros, os parentes de Shakila disseram que estavam passando por maus momentos. Eles deixaram para trás as poucas posses que tinham: sua única vaca e duas cabras. O pai de Shakila e seu tio estão trabalhando apenas com empregos diários, ganhando US$ 4 por dia, quando há trabalho. A pequena casa da família feita de terra não tem nem aquecimento, nem eletricidade, e conseguem cozinhar sua comida em uma única panela sobre brasas no quintal.

Com vontade de voltar à sua aldeia em Naray, os membros da família recorreram aos tribunais para ver se o promotor ou o juiz poderiam protegê-los do clã gujar caso eles voltassem. Mas a ordem que receberam do chefe de polícia foi para que procurassem a polícia local em Naray para obter ajuda.

Gul Zareen balançou a cabeça. O chefe de polícia é um parente de Fazal Nabi, o homem que sequestrou Shakila, disse ele. "Nós provavelmente não poderemos voltar para nossa cidade"

Shakila olhou pela janela para o quintal sujo. "Eu realmente não sei como será o meu futuro", disse. "Se vai ser bom ou ruim." 

Primeira Edição © 2011